Born to Run

born-to-run

Born to Run (2016), Bruce Springsteen.

Estava tão curioso em ler a autobiografia de Bruce Springsteen que, apesar de ter sido o último livro que comprei, tratei de fazê-lo furar a fila. É impossível não comparar com a biografia escrita por Peter Ames Carlin, publicada em 2012 e lançada no Brasil em uma edição apressada para aproveitar a vinda do Boss para o Rock in Rio de 2013. Foi com alegria que constatei que um não torna o outro obsoleto. São textos complementares.

Interessante notar que Bruce começou a trabalhar em Born to Run em 2009, sem se dar nenhum prazo para terminá-lo. Portanto, quando abriu suas portas a Carlin, já sabia que escreveria a sua própria biografia. Talvez isso tenha facilitado a decisão de se abrir, mas, por outro lado, é de se admirar a generosidade em guardar para si algumas revelações. No livro de Carlin, talvez a mais surpreendente seja a depressão daquele que incendeia multidões noite após noite. A depressão, que também atacou fortemente seu pai por décadas, torna-se o principal tema na reta final do livro. Mas está lá desde o início.

Assim como na biografia de Carlin, Bruce começa a sua falando da infância, da família, de seus pais e avós, para depois ir avançando por temas dispostos em capítulos relativamente curtos, no total de 79. Fico pensando se Bruce chegou a ler o que Carlin escreveu, pois é incrível como sua narrativa serpenteia pelas lacunas deixadas por seu biógrafo e não se detém por fatos ali abordados exaustivamente. O livro de Carlin nos dá o panorama histórico-cronológico jornalístico. O de Bruce nos revela alma por trás daqueles acontecimentos.

Bruce Springsteen faz parte de uma estirpe de compositores contadores de história, então é de se esperar algo semelhante em suas memórias. E ele não decepciona. Como ele mesmo diz no final, não dá pra contar tudo em um livro, seja pelo tamanho, pela discrição e o respeito às demais pessoas. Trata-se, contudo, de uma narrativa sincera, corajosa, e que tem como fio condutor um dos aspectos de sua personalidade: justamente o mais conturbado. E, por isso mesmo, aquele que o fez ser quem é.

Após o início familiar, totalmente pessoal, que ajuda também a dar o contexto psicológico e social de sua origem, em meio às colônias irlandesas e italiana de Freehold, em New Jersey, Bruce passa a descrever suas primeiras tentativas de se tornar um astro de rock. Na adolescência com os Castiles, depois com o power trio Earth, e finalmente com o Steel Mill, que chegou a angariar uma pequena legião de fãs locais. Na autobiografia fica mais evidente as motivações que o fizeram abrir mão de ser parte de uma banda pra querer ter uma banda para acompanhá-lo, inicialmente chamada de Bruce Springsteen Band.

O roteiro segue conforme o esperado, com o primeiro contrato, o primeiro disco, o sucesso de Born to Run, até chegar a The River. Ao chegar aos anos 80, com a explosão subsequente de Born in the USA, as questões pessoais voltam a se destacar e a competir com as musicais. Após o fim da turnê com a Anistia Internacional, em 1988 (eu fui!), até o triunfal retorno com a E Street Band em 1999, praticamente não se fala de música. Pela primeira vez ele fala de seu primeiro casamento, o início de sua relação com Patti Scialfa, da família, dos filhos, sobre ser pai. Na década seguinte, volta a falar também de música, seguindo até o lançamento de High Hopes e um pouquinho além, chegando a deixar registrado o falecimento de Allen Toussaint em 2015 (a biografia de Carlin vai até Wrecking Ball, de 2012).

O final do livro deixa um travo amargo, pois é um retrato de seu autor em luta contra uma doença pouco compreendida. Bruce foi vítima de um preconceito comum contra os remédios antidepressivos. Quando seu psicanalista por 25 anos faleceu em 2008, ele foi procurar outro, que acabou lhe sugerindo parar de tomar os remédios para ver o que acontecia. Nunca dá em boa coisa. E não deu.

Apesar desse final um tanto pesado, mas coerente com a narrativa da autobiografia (não se espera menos de um bom contador de histórias), a leitura é envolvente e agradável, com o humor e estilo típico de Bruce, da forma que a gente conhece dos shows e entrevistas. Lendo os dois livros, entende-se a opção do compositor em querer mostrar seu lado sombrio em detrimento do popstar.

Só não é possível entender a razão de tantos problemas na tradução em português, realizada por dois tradutores. A falta de revisão salta aos olhos ante a quantidade de artigos e preposições desaparecidos (não se trata, no entanto, da versão de O Sumiço), problemas de edição do tipo “sua música dele” e até mesmo erros ortográficos. Há também muitas opções de tradução estranhas, frases confusas e alguma falta de familiaridade com o material traduzido. O título de um dos capítulos é o nome do power trio de Bruce, Earth. Colocaram “Terra”. Porém, ainda que um pouco irritante, o problema não atrapalha a leitura, exceto quando um “a la” se transforma em “lá”. Tive de reler a frase umas quatro vezes pra entender onde estava o erro.

E, assim como na biografia, termino minha resenho com um anticlímax.

Explore posts in the same categories: Bruce Springsteen, Livros

Deixe um comentário