
Dias de Luta: o Rock e o Brasil dos Anos 80 (2002, 1ª ed. / 2013, 2ª ed.), Ricardo Alexandre.
Meu pai sempre se mostrou incomodado com jornalistas mais jovens escrevendo ou falando sobre uma época que não viveram, mas ele sim (e intensamente), particularmente quando o tópico é futebol, política ou movimento musical. Hoje começo a entendê-lo.
O conhecimento de quem viveu cada segundo de uma época, lia as reportagens e artigos publicados no frescor do momento, trocava figurinhas com pessoas e personagens igualmente participantes daquilo que é muito mais do que uma “ambientação” passada, mas suas próprias vidas, é muito mais profundo, complexo e abrangente do que aquele adquirido por quem leu, estudou ou ouviu sobre o período.
Aquele que não tem a vivência da época está muito mais vulnerável a versões, distorções ou construções (o pior dos tipos) sobre os eventos ocorridos, e passa a tomar aquilo como verdade, ou mesmo como uma verdade, mas que de qualquer forma pode acabar se tornando “a” verdade pela simples ausência de uma outra.
Quando resolvi comprar Dias de Luta, tais considerações rondavam minha mente. Ricardo Alexandre, o autor, não é exatamente uma pessoa estranha aos anos 80, mas sua adolescência coincide com o momento de dissensão e esvaziamento do movimento roqueiro que revolucionou a música e os costumes brasileiros. Assim sendo, estaria ele muito dependente das entrevistas e leituras realizadas (com fartura, diga-se positivamente) para construir o painel do Rock e do Brasil dos anos 80. Fosse qualquer outra época, isso nem de longe seria um entrave pra mim. Mas sendo os anos 80, os “meus” anos 80, sabia de antemão que qualquer deslize seria imperdoável.
O que me animou a vencer essa resistência foram as últimas linhas do texto da orelha: “nova edição, totalmente revista, corrigida e atualizada”. O livro original é de 2002, escrito entre 1994 e 2001, e a nova edição, de 2013. Considerei que o afastamento do material e a maturidade fariam com que essa revisita ao tema poderia ter o condão de podar eventuais arroubos, deslumbramentos ou equívocos interpretativos. Mas logo no prefácio Ricardo Alexandre afasta tal hipótese, anunciando que optou por preservar o frescor e paixão do texto original, corrigindo ou adicionando informações pontuais. Enfim, quis transformar seu texto também em um retrato de uma época. E quer saber? Ele acertou. Parte da graça do livro está na paixão juvenil em desvendar os bastidores e lógica criativa de uma época de nossa história cultural que hoje é objeto de culto.
O tempo e a ênfase dedicados a determinados capítulos e personagens, como o movimento punk paulista e o agito de Julio Barroso, acabam parecendo ter tido mais impacto na época do que realmente tiveram. Porém, ainda que, para quem não viveu a época, isso possa causar alguma distorção, por outro lado a revelar uma cena ampla, onde muitas coisas aconteciam ao mesmo tempo, independentemente de seus desdobramentos futuros ou de seu impacto na mídia ou na indústria do disco. Captam-se, acima de tudo, as aspirações de uma geração.
Entretanto, a dificuldade nesse tipo de relato é manter uma narrativa linear. Avança-se muito num ponto e, na hora de falar de outro, há que retroceder uns dois anos. Não sei se é possível escapar dessa armadilha. A própria inclusão dos Engenheiros do Hawaii já nos estertores do livro ficou meio inexplicável, uma vez que a banda estourou ainda em 1988 (o texto acompanha até 1992).
O livro pode ser dividido em duas partes: a ascensão do rock até o Rock in Rio e o auge e a ressaca após o fenômeno do RPM. Na primeira fase, o grande destaque está principalmente nos meandros da indústria fonográfica a partir da saturação e predomínio dos medalhões da MPB, com Gil e Caetano como principais alvos (mas que também engloba Gal, Bethania, Chico e Milton), e a busca por um novo som. O grande mérito do autor foi não começar sua análise com Blitz, Lulu Santos e os punks da periferia, mas com Cor do Som, 14 Bis e Roupa Nova. Esses personagens de transição são essenciais para melhor compreender o impacto do chamado Rock Brasil ou BRock dos 80. Em seguida, o posicionamento, expectativa e relacionamento dos produtores musicais com as novas bandas. Um primor!
Ler sobre o surgimento da Blitz, como Você não soube me amar estourou nas rádios, como Menina Veneno foi menosprezada pela gravadora antes de virar um Ritchie… digo, o maior hit do BRock, as aventuras e desventuras de Leo Jaime e seus Miquinhos, a agitação da cena paulistana, o surgimento das danceterias e o seu papel na divulgação do rock nacional, o esquema mafioso do Chacrinha, a luta de Lulu Santos para “acontecer”, o desenvolvimento de Liminha como produtor, a chegada da Fluminense FM (aliás, a chegadas das FMs), a panelinha da Bizz, foi como viajar no tempo com acesso à internet. Senti-me um McFly tupiniquim capaz de obter num smartphone intertemporal informações que na época chegavam mascadas, atrasadas, ou simplesmente permaneciam desconhecidas por muitos e muitos anos.
Os diferentes momentos de evolução do rock brasileiro no período são entrecortados e contextualizados com o que ocorria no país, principalmente na área política e econômica. Por um momento, achei que o autor iria escorregar na tal armadilha das versões e construções quando quase ia associando o surgimento das bandas de rock com a abertura política. Mas ele se redime ao dizer “o negócio é que os jovens de 1980 estavam pouco interessados na abertura”.
Na verdade, o que aconteceu no Brasil não foi um fenômeno isolado, mas mundial, que tem seu paralelo em vários países do mundo, inclusive na América Latina. Uma ditadura militar provavelmente iria ser um obstáculo a esse fenômeno de renovação musical e cultural, como aconteceu no Chile, que chegou um pouco atrasado na festa, mas o seu fim não foi um fator desencadeador.
No Rock in Rio, os primeiros deslizes narrativos. Primeiro, uma contradição perdoável em uma primeira edição, mas imperdoável em uma edição revisada. Num primeiro momento, as atrações estrangeiras são descritas como medalhões em oposição ao frescor jovem das atrações nacionais. Mais pra frente, o próprio autor admite que as bandas de heavy metal e hard rock estavam no auge de sua popularidade, como Iron Maiden e AC/DC. Então, por que não fazer a ressalva logo de início?
Segundo, um deslize banal e pequeno se você não for um jornalista da área musical. Sendo, é praticamente um crime: ignorar que o Queen era a atração principal da primeira noite do Rock in Rio. Ricardo Alexandre narra este dia como se a fosse a noite do Iron Maiden. Claro que havia uma penca de fãs do Iron ali, mas a principal atração era o Queen, que atraiu muito mais fãs (entre eles, certamente muitos fãs do Iron, uma vez que Freddie e Cia eram muito bem quistos pela galera de rock pesado).
O diálogo com a cena internacional é bem abordado na primeira fase, culminando com o impacto do Rock in Rio nas relações entre público-artistas-mídia, mas é deixado de lado na segunda parte do livro. O autor se deixa envolver pelas picuinhas entre os artistas e o baixo astral dos roqueiros oitentistas durante a fase negra dos anos 90.
O livro dá muita ênfase às críticas (particularmente de Herbert Vianna) à influência de bandas inglesas como Echo & The Bunnymen, The Cure e The Jesus & Mary Chain na produção nacional. Na boa… Isso influenciou quem?! Ótimas bandas (adoro!), mas que tiveram um impacto setorizado, provavelmente de amigos músicos dos entrevistados, mas nem de longe a ponto de influenciar a cena musical, uma vez que nem as bandas originais eram sucesso de audiência no Brasil. Além disso, a Legião Urbana, especialmente no Dois, era fortemente influenciado por The Smiths e The Cure e isso não parecia incomodar em nada os amigos dos Paralamas do Sucesso.
Em vez de se deixar levar por esse discurso pouco representativo, o autor poderia se voltar ao que estava acontecendo na cena internacional, com o pop se distanciando do rock e o eletrônico tomando conta das rádios, e então retornar para a cena brasileira. U2 se rendia à eletrônica. Até o Barão Vermelho, o grande tradicionalista do rock, lançou mão de alguns plim-ploins. O tal popsambalanço de Lulu Santos nada mais era do que uma tentativa do artista de virar o arauto dos novos tempos modernos, um papo de “o rock morreu”, esse sim copiado da imprensa estrangeira. Só que toda essa onda de decadência do rock (em geral, não apenas do rock brasileiro) acabou com o Nirvana. O grunge resgatou o rock para o mainstream e a eletrônica, incluindo aí o grande darling da época, o Pet Shop Boys, foi varrida das rádios por um bom tempo, de forma que hoje neguinho pensa duas vezes antes de “matar” o rock, a História (na época um historiador também ousou dizer que a História havia acabado com a queda do Muro), ou qualquer outra coisa.
Ou seja, muito da decadência apresentada na segunda parte do livro é fruto de um movimento natural de retração de um gênero, no Brasil agravado por uma puta crise econômica e pelo imediatismo das gravadoras (o que está bem abordado no texto). Quando um gênero cai no gosto popular, passa tudo na peneira das rádios e gravadoras. Depois que a febre passa, é natural que arestas sejam aparadas e só sobre o que é realmente bom dentre aqueles que conseguiram se manter juntos. No caso, Barão (reinventado depois de Cazuza), Legião, Paralamas e Titãs. Muitas bandas de qualidade que não conseguiram renovar seu som e se manter relevantes na década seguinte só voltaram ao mainstream após um movimento de revival oitentista no novo século, com festas Ploc e acústicos MTV. Quem melhor aproveitou esse revival foi o Capital Inicial, que conseguiu ser nos anos 2000 a banda que não soube ser após esgotar o repertório herdado do Aborto Elétrico.
Outro pequeno equívoco foi incluir o Acústico MTV dos Paralamas neste contexto de retomada. De certa forma, foi para mim (como conto no meu Top 20 de álbuns ao vivo), mas a banda, após o estranhamento com o álbum Os Grãos no início da década (o menos comercial de toda a discografia paralâmica), retomou o caminho do sucesso nos anos 90 com vários hits radiofônicos, inclusive sendo chamada para encerrar, junto com os Titãs, uma das noites do Hollywood Rock. Na gravação do Acústico, os Paralamas estavam tinindo, plenos de frescor e vigor artístico. O discurso de Herbert no final dos 80 em prol de uma fusão do rock com a MPB e ritmos latinos virou mainstream nos anos 90, com Skank e Chico Science, sem que isso, contudo, fosse uma novidade na história do rock nacional, vide Mutantes e Raul Seixas nos anos 70.
Bola dentro quando avalia que uma banda sobrevivente ou sofistica seu som e se afasta um pouco de seu público original ou cai numa fórmula repetitiva. Isso invariavelmente abre uma brecha para que uma outra onda venha arrebatar um público ávido por aderir à nova moda do momento. Parte desse raciocínio está no livro, mas muito eclipsado pela ressaca de artistas que deixaram para trás os seus tempos de glória (e alguns não haviam ainda a recuperado).
A análise, via entrevistados, de uma cooptação das bandas sobreviventes pelos medalhões da MPB soa um tanto forçada e se deve possivelmente ao rancor de alguns músicos pelo fato da “nobreza” que eles vieram “derrubar” ainda permanecia no topo dez anos depois, enquanto eles viam seu espaço diminuir ou simplesmente desaparecer.
Também me chamou a atenção a ausência do boicote das grandes bandas da virada da década, com exceção dos Titãs, ao Rock in Rio 2. O Barão Vermelho cancelou sua participação pouco antes do evento e os Paralamas foram vistos como ingratos. A Legião Urbana, que ainda não tinha alcançado tanta popularidade em 1984, parece que nem cogitou participar. O outrora rejeitado Lobão, por sua vez, compareceu (e deve ter se arrependido). E havia, claro, o Sepultura, pela primeira vez em destaque na cena nacional.
Mas esse labirinto sorumbático é percorrido por apenas 50 páginas (de 400), chegando a um final surpreendentemente abrupto. Após lançar uma luz sobre o destino das quatro grandes bandas sobreviventes, o livro chega ao fim numa conclusão tão breve quanto o parágrafo final de uma dissertação de vestibular.
Críticas à parte, o livro pinta um delicioso retrato do que foram os anos 80 e o renascimento do rock brasileiro, do amadorismo ao profissionalismo. Para quem gosta do tema, é uma leitura obrigatória.