George Harrison resolveu não correr riscos em seu retorno aos discos (nos anos 80, um hiato de cinco anos, hoje coisa comum, parecia uma eternidade), chamando o amigo Jeff Lynne, líder da Electric Light Orchestra, para coproduzir o álbum. A parceria rendeu ainda três composições, sendo que duas delas, This is Love e When we was Fab, estão entre os maiores sucessos do álbum. A segunda é uma referência à época dos Beatles não só na letra, mas também na estrutura musical.
A volta foi em grande estilo. Cloud 9 foi muito bem recebido pela crítica e emplacou vários sucessos. O toque de Lynne na produção garantiu o equilíbrio ideal dos elementos pop com o estilo de Harrison. Enquanto This is Love, Fish on the sand e Devil’s Radio incorporam bem o pop rock, a faixa-título e Wreck of the Hesperus remetem ao blues rock. Das três baladas, duas são oriundas do filme Shangai Surprise: Just for today e Someplace Else.
Mas o maior sucesso do álbum, tanto nas rádios quanto na MTV, foi o cover de um rock obscuro de 1962, gravado por James Ray e composto por Rudy Clark: Got my mind set on you, que atingiu o primeiro lugar nas paradas americanas.
Ao contrário do que ocorre na discografia de Lennon e McCartney, que preferiram dedicar álbuns inteiros a composições alheias, covers não eram incomuns nos álbuns de George Harrison, estando ausentes apenas de três deles. As versões de George, seja em If not for you de Bob Dylan, na modificada Bye Bye Love em Dark Horse, na modernizada True Love de Cole Porter em Thirty Three & 1/3, ou neste sucesso de 87, ganham brilho autoral, soando como composições próprias.
A gravação de Cloud 9 foi uma ação entre amigos. Além da colaboração de Lynne, Harrison contou com a participação de Eric Clapton, Ringo Starr, Ray Cooper, Elton John (que se recuperava de uma cirurgia na garganta e decidiu curtir uma de músico de estúdio), além de velhos companheiros dos anos 70, como Gary Wright no piano, Jim Keltner na bateria e Jim Horn no sax. Talvez esse clima de camaradagem o tenha inspirado a partir, já no ano seguinte, para o projeto Travelling Wilburys, o supergrupo formado pelo ex-Beatle, Lynne, Bob Dylan, Tom Petty e Roy Orbison.
Após a conturbada turnê de 1974, Harrison só subiu aos palcos em pequenos eventos comemorativos ou beneficentes. Em 1992, fez uma pequena tour no Japão com Eric Clapton e um concerto no Royal Albert Hall, apresentando aquilo que poderia ter sido uma bem sucedida Cloud 9 Tour. E foi só. Ele e Lennon foram os Beatles que se mantiveram fiéis à oposição a concertos manifestada em 1966, deixando bem claro quem foram os responsáveis pelo fim da Beatlemania.
Por dez anos. Harrison manteve distante no horizonte a perspectiva de um novo álbum, sempre aproveitando qualquer desculpa para postergar o projeto. A melhor dessas desculpas foi o projeto Anthology. Quando um maluco invadiu sua mansão em Friar Park e o esfaqueou, Harrison, que se recuperava na época de câncer no pulmão, percebeu que não lhe restava muito mais tempo para fazer seu próximo álbum.
Contando dessa vez com a ajuda do filho Dhani Harrison, chamou novamente o velho amigo Jeff Lynne e deixou tudo bem encaminhado para que o disco fosse finalizado após a sua morte em novembro de 2001. Brainwashed foi finalmente lançado um ano depois.
Tanto Cloud 9 quanto Brainwashed são muito bem produzidos, sem nenhuma faixa ruim. É possível que se deva ao toque de Lynne o fato de o último álbum de Harrison, que reúne faixas esparsas no tempo, soe como uma obra homogênea.
Brainwashed abre com Any Road, um folk rock composto ainda em 1988. Run so far é uma composição para um álbum de Eric Clapton de 1989, Journeyman. Rocking Chair in Hawaii vem das seções de All Things Must Pass, de 1970. O cover de Between the Devil and the Deep Blue Sea, um clássico dos anos 30 que mereceu as vozes de Ella Fitzgerald e Frank Sinatra, foi recuperado de uma apresentação para TV de 1992.
Metade das canções novas reflete questões existenciais relacionadas à doença e à morte. Uma delas, Looking for my life, é inspirada pelo ataque sofrido. A única faixa instrumental do álbum, Marwa Blues, ganhadora de um Grammy em 2004, é um retorno de Harrison à música indiana. A faixa-título, uma crítica político-social com mensagem espiritual, encerra o álbum com o mantra Namah Parvati entoado por George e Dhani.
A despeito dos quase 15 anos que separam os dois álbuns, cabe dizer que George Harrison iniciou e encerrou sua carreira solo com dois excelentes álbuns em cada extremo, possivelmente seus quatro melhores. No miolo, há dois álbuns bem recebidos pela crítica, Thirty Three & 1/3 e George Harrison, antecedidos por dois álbuns subestimados e prejudicados por circunstâncias da época alheias ao espectro musical (Dark Horse e Extra Texture), e seguidos por dois álbuns menos inspirados e que retratam um gradual desinteresse do artista pela indústria musical e vice-versa (Somewhere in England e Gone Troppo). Ainda assim, é inadmissível que se tenha a sua discografia em tão baixa conta e suas músicas fora de evidência.
George não chegava a ter uma grande voz, mas tinha força emotiva. Poderia até haver guitarristas mais habilidosos do que ele (em Taxman, Paul teve que fazer o solo da música, pois George não conseguia acertar), mas ele conseguiu imprimir uma identidade em seu jeito de tocar, algo muito mais difícil. Não era um letrista por vocação, como John e Dylan, mas, quando tomado pela inspiração, conseguia ótimos resultados (eu diria que Paul é como George, mas pensa que é como John). Como compositor, apesar de ter largado atrás de seus colegas de Beatles, atingiu um grande domínio melódico. Suas composições têm fluidez e proporcionam boas viradas de clima. Raras são as faixas monótonas ou clichês (embora existam).
É bem verdade que é difícil comparar o impacto de sua discografia com as de Lennon e McCartney. A trágica morte de John em 1980 tornou qualquer fita mal gravada com sua voz em peça sacrossanta. Além disso, seus dois álbuns iniciais e o disco que deixou finalizado no dia em que morreu se sobrepõem aos outros três que ficaram no tempo.
Paul tornou-se onipresente na mídia e nos palcos, sabendo muito bem conservar o prestígio de sua carreira solo e manter a chama dos Beatles acesa no coração dos fãs. Ainda que a maioria de seus álbuns seja tão pouco lembrada quanto os de George, as canções estão sempre presentes.
George nunca foi muito de paparicar a mídia, não frequentava o circuito das celebridades (embora andasse sempre em companhia de figurões do cinema e da música), e tampouco fazia questão de paparicar ou fazer agrados simples a seu público (o que talvez seja o seu maior pecado). Não é a toa que, só após a sua morte, sem ter como obstáculo a presença de sua personalidade crítica e arredia, começou a haver um resgate de sua carreira e uma melhor apreciação de sua obra, a ponto de alguns, num arroubo compensatório de anos de indiferença, chegar a considerá-lo o mais genial dos Beatles.
Menos, menos… E, ainda assim, muito mais.
Resolvi me torturar e fazer uma coletânea de duas horas da carreira solo de George Harrison, como se estivesse gravando numa velha fita K7. O tempo foi arbitrário, para garantir coesão no tracklist. A minha lista inicial passou fácil de 3 horas. Total: 2:00:22.
01-Awaiting on you all [early take]
11-Between the Devil and the Deep Blue Sea
13-Give me love (Give me Peace on Earth)
16-This Guitar (can’t keep from crying)
17-The day the world gets round
26-P2 Vatican Blues (Last Saturday Night)
28-I live for you [bonus track]