Alguns álbuns ao vivo se destacam por registrar todo o esplendor criativo de um artista ou banda em um determinado momento carreira ou por sintetizar em um único momento toda a sua até então. Álbuns como Paris, Alchemy, Wings Over America e It’s too late to stop now certamente se encaixam em suas respectivas discografias dessa forma.
Em sentido oposto, alguns shows se destacam justamente por conter o registro de um momento singular de toda uma carreira. Alguns álbuns da série MTV Unplugged funcionam assim. Mas há outros exemplos de excepcionalidade, como o show de Chico Buarque e Maria Bethania no Canecão ou o encontro de Jimmy Page com os Black Crowes no The Greek.
Na sequência dos meus 20 álbuns ao vivo preferidos, listo um exemplo de cada um, onde os artistas conseguem, seja pela excepcionalidade, seja pela síntese artística, atingir resultados verdadeiramente brilhantes.
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Circuladô Vivo (1992), Caetano Veloso.
Curiosamente, o primeiro álbum solo ao vivo de Caetano Veloso surgiu após 20 anos de carreira, e foi em formato acústico, só voz e violão, chamado Totalmente Demais, gravado no Golden Room do Copacabana Palace. Até então, ao longo dos anos 70, só shows com outros artistas: Gil, Chico, Bethania, os Doces Bárbaros. Lembro-me de um show no Circo Voador, em meados dos anos 80, com formato também acústico, mas com banda completa, que desfiava um repertório muito semelhante ao dó álbum Caetano Veloso (1986), igualmente acústico, feito para o mercado norte-americano, que já renderia um excelente disco (ou fita VHS) ao vivo.
Mais foi apenas em 1992 que Caetano botou na rua um disco ao vivo que registrava todo o seu esplendor sobre o palco: Circuladô Vivo. Desde então, Caetano passou a lançar um disco ao vivo para cada álbum lançado, com exceção do A Foreign Sound.
Depois de passar os anos 80 com uma sequência de discos meia-bomba, foi com Circuladô que Caetano ressurgiu como um artista de álbuns, e não apenas compositor de grandes hits radiofônicos perdidos em meio a faixas inexpressivas, embora o álbum anterior, Estrangeiro, já apresentasse um processo de recuperação nesse sentido.
A turnê do Circuladô foi muito mais do que um show, ela marcou os 50 anos do artista, que rendeu um belíssimo especial na finada Rede Manchete, com cinco capítulos que foram ao ar de segunda a sexta, entremeando músicas de uma apresentação no Imperator com entrevistas, filmes antigos e cenas em família. Também havia música nas entrevistas, com versões emocionais de Cabelos Brancos, samba de Herivelto Martins, e Curvas da Estrada de Santos, de Roberto Carlos.
No material registrado em CD duplo está o que há de melhor em Caetano. Mano a Mano de Carlos Gardel, acompanhado apenas do violoncelo de Jaques Morelembaum, representa todos os tangos e boleros constantes de sua discografia desde Cambalache, em 1969.
O resgate de sambas antigos, outra constante na carreira, com Quando eu penso na Bahia, de Ary Barroso, e Disseram que eu voltei americanizada, feito para Carmen Miranda.
Homenagem à Bossa Nova em Chega de Saudade e ao frevo, com os seus Chuva, suor e cerveja e A Filha da Chiquita Bacana.
Lá está também a reinvenção de canções da MPB, elevando-as a novo patamar, dessa vez com Oceano, de Djavan, uma música que sempre considerei chatinha e clichê, mas que na interpretação de Caetano ganha contornos épicos.
Lá está também os covers dos ídolos estrangeiros como Bob Dylan, numa versão de Jokerman superior ao original (bem, quando se trata de cover de Bob Dylan, isso costuma mesmo acontecer), e Michael Jackson, já abrasileirado anteriormente em Billy Jean (no tal disco de 86 e também no já citado show no Circo), dessa vez com Black or White, que serve de introdução a Americanos. Sim, o show também tem aquelas composições novas inéditas e experimentais que nem sempre funcionam muito bem, mas nada tão constrangedor quanto As Camélias do Quilombo do Leblon, apresentada na recente turnê voz e violão junto com Gilberto Gil.
Alguns clássicos que antes não me encantavam (devido possivelmente aos insossos arranjos típicos dos anos 80) ganharam versões brilhantes, delicadas e repleta de nuances, como Queixa e Você é Linda, além de eternos clássicos do top de Índios e Sampa. A batida Leãozinho é renovada com um acompanhamento solo do baixo de Dadi, para quem a canção foi composta.
Das faixas do disco que deu origem à turnê presentes no show, só sobreviveram ao disco Circuladô de fulô, Itapuã e A Terceira Margem do Rio, menos da metade das apresentadas ao vivo.
E, claro, tem também o momento confessional, de conversa com o público, histórias emotivas e, para alguns, surpreendentes. No caso, a história por trás de Debaixo dos caracóis dos seus cabelos, que Roberto Carlos compôs sobre o exílio de Caetano em Londres.
A excelência do show não se limita apenas ao repertório, mas principalmente aos arranjos de Morelembaum. A sonoridade retrata toda a complexidade de Caetano, com guitarras roqueiras, batuques, distorções, cordas e o velho banquinho e violão. Tudo na medida certa. Talvez só tenha ficado de fora a fase londrina, que, de alguma forma, fez-se representar pela canção do Rei.
Queixa ao vivo.
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Live in Dublin (2006), Bruce Springsteen with The Sessions Band.
Em 2006, Bruce Springsteen decidiu gravar um álbum baseado no repertório de músicas tradicionais resgatadas por Pete Seeger. Entretanto, nas mãos de Bruce, as canções folk ganharam uma roupagem mais adequada ao seu habitual wall of sound, e banjos, acordeões, tubas e violinos mesclaram-se à guitarra elétrica. Tanto melhor! Disco-tributo costuma pecar por excesso de respeito ao material original. Se We Shall Overcome: The Seeger Sessions (2006) fosse um disco de folk tradicional como gravado por Seeger, provavelmente seria teria se tornado uma nota de rodapé na carreira de Bruce.
Com o pé na estrada com sua The Sessions Band Tour, aquelas versões foram turbinadas pela mitológica energia de Bruce ao vivo. Quando chegou a Dublin no final da terceira leg da turnê, a Sessions Band havia se tornado um todo compacto, uma máquina musical e coreográfica perfeita. Nada menos do que 18 músicos sobre o palco, com intensa movimentação, numa aparentemente descontraída confusão, sem ninguém se atropelar, sem nenhuma trombada. E com cada músico tendo pelo menos um momento de brilho sob os holofotes ao longo do espetáculo. Uma grande festa!
We Shall Overcome é o primeiro e único (até o momento) álbum de Bruce com músicas que não são de sua lavra. Compositor prolífico, nunca houve muito espaço para covers em seus álbuns, apenas nos shows. Então é no mínimo inusitado um show do The Boss em que metade (ou mais) das músicas apresentadas não sejam dele. Mas se por um lado Bruce aproximou musicas tradicionais ao seu estilo, por outro, fez o caminho inverso com suas composições próprias, adaptando-as à sonoridade do álbum e, consequentemente, da Sessions Band Tour. Assim, enquanto canções como Long time comin’ precisaram de poucas mexidas, If I should fall behind vira uma valsa, Further up (up the road) fica a um passo do gospel, Open all night se transforma numa apoteótica big band dos anos 20 e Growin’ up só é reconhecível pela letra.
Além da excepcionalidade do show em si em relação à carreira de Bruce (a turnê foi muito mais aceita na Europa, onde foi um estrondoso sucesso, do que nos EUA, com casas à meia-bomba), o CD do show não deixa de ser uma excepcionalidade em relação à própria turnê, deixando de fora algumas canções regulares dos shows e eternizando outras que não eram tão tocadas.
Live in Dublin já pertence a uma etapa da indústria fonográfica em que os DVDs são o carro-chefe e os CDs uma espécie de by-product. De fato, até pela magistral apresentação cênica da Sessions Band, o DVD é o produto principal, mas, musicalmente, o CD não deixa nada a dever. Por sorte, o repertório é o mesmo, incluindo os extras.
Uma repaginada Blinded by the light e a arrebatadora O Mary don’t you weep no The Point Theatre, Dublin, em novembro de 2006.